Os dias num navio, que se supõem semelhantes entre si, perdem rapidamente a cronologia do tempo, assumindo comando guiado pelo imprevisto. A rotina de um navio é muito imprevista.
Tudo começa mais ou menos igual ou parecido com isto …
acordar com o despontar do sol pelas cinco da manhã, passear no deck exterior enquanto ainda está vazio e sereno, apreciar o calor suave da manhã, o pequeno almoço farto onde quase todos se apresentam.
Subir à piscina de um lado, os jacuzzis a borbulhar e já superlotados do outro, o sol a brilhar no alto e aquecer os corpos estendidos. Mas entretanto …
Uma bebida (ainda não são 11h da manhã).
Animação matinal com uma dança animada. Um livro desfolhado e o enredo perdido. Umas palavras cruzadas (nunca entendi quem faz palavras cruzadas?!).
Mais uma bebida (ainda não é meio dia). Ida ao almoço alargado e variado no Restaurante Panorama. Mais duas ou três bebidas no Bar Miramar. A exigência de uma sesta na cabine. Muito se dorme a bordo. Outra vez na piscina. Outra vez ao sol. Mais animação com jogos de bola (também não entendo quem participa, mas olho, rio e divirto-me).
Outra vez uma ou duas bebidas (já lhes perdi a conta) …
Passei algumas das minhas manhãs e tardes no deck exterior junto do Bar Marina, onde lia e observava a vida à minha volta, por vezes tinha companhia e aí conversava e ria muito.
Uma diversão!
E se, de inicio bebia uma flute de cava, logo percebi que a acidez característica do espumante espanhol me destruía. Depois foi o apetite que desaparecera resultado de algum enjoo. Então optei pela nutrição, ou seja, beberia algo nutritivo que me alimentasse.
Surge como opção inequívoca o Bloody Mary!
“It’s an eye-opener, it’s a hangover cure, it’s a nutritious breakfast— what can’t the Bloody Mary do?” diz-se sobre um Bloody Mary que desperta, cura ressacas e é um pequeno almoço nutritivo. Assim o entendi!
Mas eu não bebo vodka e este cocktail tem por base a vodka. Só que eu sou fatalmente alérgica a este destilado pois que, em duas experiências, há mais vinte anos, fui direitinha para o hospital com um choque anafilático, que poderia ter corrido muito mal. Vodka nunca mais!
Já de rum, em particular Bacardi, sou admiradora confessa e tatuada.
É suave, envolve-nos lentamente e liberta-nos da tensão! Diria perfeito!
Mas não bebo puro. E o sumo de limão, que lhe juntava no passado, agora não tem piada!
Adoro sumo de tomate e se for temperado é divinal. Então troquei a vodka pelo Bacardi e a bebida estrela passou a ser o Bloody Mary … e acertei!
Assim, e lembrando bons tempos, deixo uma receita bem caprichada para um fim de tarde relaxado como eu gosto:
Ingredientes
2 Partes de Bacardi
4 Partes de Suco de tomate
¼ Parte de Molho Inglês
¼ Lima
2 salpicadelas de Molho de Tabasco
1 Pitada generosa de Pimenta preta
1 Pitada de Flor de Sal
1 Palito Aipo
Como misturar
Cortar a lima em pedaços e colocar num copo misturador pressionando para o sumo se soltar, temperar com Flor de Sal e Pimenta preta moída na hora, salpicar o molho de Tabasco e servir o molho inglês, verter o sumo de tomate e, por fim, o Bacardi. Mexer suavemente. Despejar uma e outra vez num copo alto gelado e cheio de cubos de gelo. Decorar com aipo.
E depois … Tchim, tchim … Agradeçam e Sejam felizes!
Assistir ao pôr do sol. Mais uma bebida para celebrar. Recolher para preparar para a noite que se segue. Tudo é preparação num navio, e à noite mais ainda, cada uma é temática e se a início me questiono logo entro nas propostas: noite branca, noite rock, noite tropical, noite de hallowen, noite do capitão.
O jantar no Restaurante Miramar e a atribuição de mesa (mesmo com mesas marcadas o improvável acontece e os desencontros são a toda a hora). E o após jantar: o bar Embarcadero para café e com música das bandas Blanco y Negro ou Jet Set, mais tarde o bar Rendez Vous que anuncia os encontros tardios, os espectáculos no Salão Broadway com ares de musical são visitas ao Quartier Latin, Show de Talentos com os passageiros e tripulantes a exibirem as suas qualidades escondidas, A Magia do Cinema, o Rock that never dies, entre outros que animam (ou tentam) o público presente …
e, para os resistentes, a discoteca Starlight, que na verdade nunca funcionou como tal, mas como reduto dos mais noctívagos.
Todos os dias é assim. Bem, mais ou menos.
A rotina de um navio é muito imprevista
E tudo muda. A vida num navio é vida vivida ao segundo, mas eu não o descobri logo. Pensei que me retiraria para ler os muitos (demasiados) livros que tinha como meta ler. Escrever, escrever, escrever. E descansar. Acho até que julgava que me ia ausentar da vida por nove dias. Mas que sei eu?
Nada, concluo. Tudo mudou, não me era dada alternativa que não fosse começar a viver a vida e já não saber o que aconteceria a seguir.
Surge o imprevisto e a rotina … já nem sei o que é rotina.
Já dizia o Comandante Nikolaos Chazapis
O nosso único objectivo é fazer este seu cruzeiro exceder as suas expectativas e assegurar-nos de que todos os seus momentos a bordo são inesquecíveis.
O Brasil tem várias diferenças horárias em relação à Europa. Menos duas no Rio de Janeiro. Menos três na Bahia. Menos quatro no Acre. Depende do estado, mais a sul ou a norte. Interior ou litoral.
Durante a travessia teria de me adaptar ao horário de Salvador, e mais tarde do Rio, e outra vez da Bahia e novamente do Rio. Confuso? Imagino que sim! E rotina? Imprevista!
Ora na travessia, comecei com o horário de Espanha, por isso de Inverno, em que o sol nascia a horas “normais” e se “deitava” antes do jantar, Ainda assim, com mais uma hora que Portugal. Durante os próximos dias iria atrasar um hora a cada dois dias. Isto não teria grande importância se estes, já de si longos, não ganhassem uma hora. Confesso que no primeiro atraso não notei grande diferença e assim pensei que fosse ser.
O navio percorria duas mil oitocentas e setenta milhas por dia para no fim realizar os sete mil quilómetros que nos distanciava da Europa à América do Sul. O relaxamento começa a atingir toda a gente e só se ouve bocejar. De repente, as sestas da tarde multiplicam-se e são sestas da manhã também. Muito se dorme a bordo.
As sestas da tarde transformam-se em cinco, seis horas de sono, perde-se o jantar. Acordo de madrugada. Tanto às duas como às cinco da manhã, vagueio pelos corredores vazios a espantar o despertar. Percebo que não estou sozinha e os corredores estão concorridos.
A rotina de um navio é muito imprevista. Transforma-se assumindo ritmo próprio.
Por estes dias, meia viagem estava realizada, os rostos eram conhecidos, os acenos circunstanciais, as conversas evoluíam à medida da intimidade que crescia ou da empatia que era imediata. Atrasávamos as horas para avançar até ao nosso destino. Ao destino de todos. Mas para muitos, como para mim, o destino era um sonho. E o sonho para muitos também, como para mim, já se vivia a bordo.
É por esta altura que apenas me guio pelas refeições até vir a perdê-las por absoluta desorientação temporal. Acresce não dormir mais que três, quatro horas por noite. E o apetite desaparecer quase por completo. Entendi que estava embalada pelo mar e nada havia a fazer.
Começo a escrever a todas as horas, em todos os sítios, sobre tudo e todos.
Nasce no meio deste tempo estranho de recuos a ideia daquela que será mais uma grande aventura, o romance literário. Escrevia sem parar, sem regra, sem enredo, apenas com personagens. O dia surgia muito cedo e fugia ainda a horas vespertinas, e eu absorvia todas as vivências partilhadas à minha volta. A vida fora de terra começava a criar uma fantasia que a realidade não comporta e com isso perdia-me entre páginas e páginas de outras vidas, que não eram as minhas.
Quando terminaram os nove dias de atrasos constantes, percebia, deslumbrada, o quanto a minha vida tinha avançado.
É, a vida é feita destas contradições! De rotinas imprevistas!
Escrever a bordo tornou-se uma delícia, enquanto não descobri outras coisas para fazer. De repente, inspiro-me em tudo, em todos. A bordo estavam mil passageiros e cerca de seiscentos tripulantes. Este navio fez uma travessia que é a reposição do barco na primavera e verão da América do Sul. Não funcionou como um cruzeiro turístico normal.
Grande parte da tripulação, proveniente de mais de trinta países, já estava embarcada há cerca de seis meses, pois fez toda a primavera e verão europeu.
A vida a bordo, soube-o na primeira pessoa, não era fácil, mas compensava monetariamente o sacrifício.
No entanto, os sentimentos variam muito desde a alegria absoluta até à mais profunda angustia. Falo deles porque percebo que estamos todos no mesmo barco, não há fotografias de registo, prefiro as palavras.
Diego, vinte e poucos anos, natural São Paulo, vai ser pai brevemente, não gosta do Brasil e não quer voltar a viver lá. Sorri, falando espanhol, inglês e português. Serve o café solo ou o café com leite, conforme o pedido. Diz que é licenciado em turismo. Embarca duas vezes ano, quer isto dizer que está em terra pouco mais que um mês. Gosta de futebol, gosta muito até, mas da liga italiana. É tiffoso do Inter de Milano. Que se encontra na hora da amargura nesta época, mas vai melhorar, e tem saudades, saudades do tempo em que o Mourinho ganhou tudo. Do futebol brasileiro? Não gosta, não gosta nada. Diz que é tudo muito sujo. E corrupto também.
Ainda não sabe, o Diego, mas sujidade e corrupção são sinónimos e nos dias que correm não têm nacionalidade, nem bandeira, nem religião.
Mas é isso, gosta mesmo é de Itália, onde tem uma namorada brasileira que engravidou recentemente e, por isso, só vai estar embarcado até aos seis meses de gravidez dela. Depois regressa à Europa e só volta a embarcar quando a criança, que ainda não nasceu, fizer um mês.
Termino o café da manhã como todos lhe chamam a considerar para mim que este jovem rapaz não vive o agora, apenas se sabe projetar no futuro.
Concluo que com a idade dele é assim que é, lembro-me vagamente, eu que agora só sei viver o hoje.
Saio para o exterior, e instalo-me discretamente a ler junto com outros passageiros que, como eu, ainda não tomaram pulso ao quotidiano do navio. Passo na parede de escalada onde, sentado, desanimado, está o rapaz que nos apresentara o navio, no dia de embarque, e que tinha um sorriso e uma alegria contagiante, que a mim me deixou bastante confiante. Mas aprendi, embora já o soubesse, que nada é necessariamente o que aparenta ser.
Wellington, 28 anos, interior de São Paulo, entediado. Está sentado no chão que dá acesso à subida da parede de escalada, algo que jamais farei, localizada na popa, e nem é uma questão de medo, é mesmo do ridículo que é aquela pretensiosa montanha de borracha, de repente, como tudo a bordo. Ou quase tudo.
Vive-se uma ilusão de vida perfeita que se torna impossível com o passar dos meses.
Que mina as mentes e os corações de quem está à tempo demais em alto mar, sem ter para onde ir, mas que assim que tem, não se sabe mais estar. Percebi que uma simples travessia de nove dias também nos dá essa sensação.
O rapaz, aparentemente bem-apessoado, que fala à sopinha de massa e o sorriso encantado que transmitiu dois dias antes, na apresentação do navio, esvai-se como as ondas.
É difícil a vida a bordo.
Há muita inveja (digo-lhe que em terra também). E trabalhamos sete dias por semana e quando não trabalhamos, nos mesmos sete dias por semana, estamos cá. Com os mesmos. Uns namoram. Outros até são casados. E há quem esteja só. É terrível estar só. Ganha-se bem (diz). Mas temos de poupar tudo o que se ganha, em euros ou dólares, para quando cambiarmos por reais ficarmos a ganhar.
Diz-me que os passageiros espanhóis são os piores. Mal-educados. Sempre com pressa. Com hora marcada para tudo. Esta travessia é que é diferente. Que há de tudo (é verdade, penso). E que é bom ouvir falar brasileiro. Mas que não volta ao Brasil. Quer ir para Chicago porque na América é que se vive bem. Será?
Vive-se bem onde se está feliz e com quem se é feliz.
No mar fui muito feliz, não era terra de ninguém. E aprendi, a muito custo mas fiel ao princípio da verdade, que mesmo no paraíso, se estiver infeliz não há sonho que o omita.
Bárbara, portuguesa, de Leça da Palmeira, vinte e poucos anos, massagista no Spa del Mar. Simpática, bonita, embora a maquiagem do género travesti de Músic hall não a favorecessem. Mais tarde, iria vê-la delicadamente maquiada e que bem lhe ficava. Trabalha muitas horas seguidas. Ganha bem. Tem muitas saudades de casa, dos pais. Mas não se arrepende. Gosta de viajar. Agora vai estar pelo Brasil mas prefere o Mediterrâneo. Tenta, sem forçar, vender os cosméticos de luxo caríssimos para os papos dos olhos, para as rugas finas do rosto, para a retenção de líquidos, para a celulite, para hidratar a pele, para esfoliar também.
Não compro nada. Ela não insiste. Percebo que ganha comissão sobre as vendas, mas não lhe devem fazer falta. À Barbara verei sempre um sorriso, suponho que estava bem.
Quanto mais estruturada era a família que tinham deixado, notava que melhor estavam e viviam a vida de marinheiros turísticos. Aqueles que fugiam de algo ou até de alguém sofriam e nuns mirava-se bem mais do que outros. Embora houvesse quem disfarçasse muito bem.
Shirley, camareira da minha cabine. Brasileira do interior, negra, nova (não lhe soube a idade), linda, sempre com um sorriso no rosto. Tinha dois filhos que deixara com a mãe. Dizia que tinha muitas saudades, mas bom mesmo era ganhar dinheiro para sustentar os filhos e ajudar a mãe. Mas custa , custa muito. E sorria, sorria sempre. Sempre disponível gostou de me saber sozinha. A vida deve ser vivida, disse-me, e por vezes sozinha para pensar, em nós, e nos outros, mas sempre em nós.
Deixou-me a pensar a bela Shirley.
Outros houve com quem troquei nome de livros. Com quem partilhei a mesa de jantar, noite após noite, uns a servir, outros a serem servidos. Quem servia os drinks da tarde. Ou da noite.
A vida nunca é o que aparenta ser.
E ali, onde tantos trabalham, e outros vivem dias de ilusão, torna-se mais evidente que nunca, que ninguém encontra o seu caminho se não o procurar. É uma travessia atlântica, mas é também uma mudança de vida.