Ontem, lá trás.

A vida de todos os que a vivem tem passado, presente e, de certo, terá futuro. Hoje, volto ao ontem, lá trás. Num passado distante, revivo presente toda a vida que vivi.

À primeira reflexão, pensar no futuro, no amanhã, onde os sonhos se concretizam, seria o tanto que bastava. Mas não era honesto, essencialmente para comigo, pois que a minha vida tem um fio de contas onde o passado vivido, o presente realizado e o futuro idealizado não se soltam. E, no rosário das minhas contas, torna-se necessário desenrolar o fio à meada.

Ontem, lá trás.
1984_Jardim Zoológico_Lisboa_Portugal

Sou a mais velha de três irmãos do casamento, já acabado, do meu pai e da minha mãe. Maria Helena, Paula Branca e Pedro Miguel (sempre tivemos o hábito de nos tratarmos pelos dois nomes e ainda assim o é!). Tenho também vários outros irmãos por afinidade paterna.

A minha família é alargada a tios e tias, primos e primas. Guardo-os em mim, embora não os necessite. A vida trilhou um feitio desprendido para melhor lidar com o que viria. E por mais que estime os meus, tenho esta coisa de acima de tudo contar comigo.

Tive uma infância muito feliz.

Sem sobressaltos. Com conforto e privilégios próprios de uma sociedade que crescia alucinada, sem saber, e imitava gostos americanos copiados à televisão. Dançava música pop britânica. Via desenhos animados de clássicos literários franceses com bandas sonoras espanholas. Bebia coca-cola sem culpa. Passava o verão no Algarve, E, em Dezembro, tinha uma árvore de Natal cheia de presentes camuflados em papéis de fantasia.

Ontem, lá trás
1991_Em casa_Gaia_Portugal

Cresci com ídolos instantâneos que duravam o tempo de um top + mas que enchiam a minha cabeça de sonhos. E cedo me revelava de ideias próprias, sem receios nem prejuízos. A adolescência foi pautada pela rebeldia de quem sempre achou que a falar é que o mundo se entende. Claro que isso trouxe-me alguns puxões de orelha na sala de aulas e da mãe e do pai também. Nada muito notável!

Entretanto, a mudança anunciada que abalou o núcleo da minha família deu-se quando os meus pais se divorciam. À época, não lhe dei grande importância e até considerei que me faziam um favor.

Ganhei mais liberdade (o presente mais envenenado que recebi até hoje) e tudo se precipitou.

A necessidade de viver até ao limite aliada a uma autonomia irresponsável e imatura levaram-me a experiências pessoais que pouco me acrescentaram e, na verdade, me ofuscaram a realidade.

Não tive nunca desvarios de adições além da alegria do desconhecido, do excesso de se ser … a vida era uma música rock com rufadas sonantes, baixos graves e guitarradas agudas que me aturdiam numa espiral sem freio.
Até um dia.

Ontem, lá trás.
1992_4 de Agosto_Porto_Portugal

Quando me sentei a escrever estas linhas dei-me conta que mais de vinte anos tinham voado sobre a minha vida. E que nunca, em tempo algum, havia refeito aquela noite, aqueles dias. A catarse chegou de enxurrada lavando a alma com as lágrimas que escorrem livres, soltas pelo rosto. Estava pronta. A cores, com duas mãos, olhava aquelas imagens dum tempo que não mais voltou.

Tinha feito dezoito anos e achava-me invencível.

Entrara directo na faculdade para um pouco ambicioso curso de relações internacionais. Fiquei a conhecer um universo alargado de pessoas. Novos hábitos, costumes, regras e contra-regras. Vinha do colégio católico feminino onde me tinha sido garantida uma redoma. Soube anos mais tarde, que aqueles valores sólidos e firmes seriam a minha salvação. Os valores foram-me transmitidos, no dia a dia, através daquela gente que me exigia muito, mas me queria tão bem.

Ontem, lá trás.
1992_1º de Dezembro_Porto_Portugal

Era o início de uma noite estrelada e fria que se queria longa, véspera de 1 de Dezembro, feriado da Restauração da Independência.

O início da noite de diversão começava tarde, muito tarde. Mas naquele tempo tarde era cedo. Ria-me feliz com amigos de ocasião que faziam amizades como o vento, ora fortes e esperadas, ora brisas suaves de um dia agradável. Nada consistente. Nada perene.

Tropecei, caí. Assim, do nada, no chão frio. Não mais me levantei. Não mais consegui falar. Sequer pensar. Em urgência, de lenço branco de fora, fui carregada em braços a toda a bolina, numa viagem sem fim, até àquelas luzes brancas que me haviam de não largar, por muito tempo.

Nada de grave, diagnosticaram.

Excessos. Talvez alguma droga. É aguardar o tempo. Logo passa. Não passou. Passaram as horas e o desespero vinha varrendo tudo à sua volta, como uma tempestade que se faz anunciar ante um vendaval, um ciclone, um tornado. Telefonemas. Zanga. Raiva. Medo. Ninguém sabia de nada. Nem o que sentir. O relógio compassava o coração apertado. O pânico começava a notar-se. Eu apagava-me a cada instante.

A agitação tomou conta da minha mãe, pouco paciente, exigia respostas que tardavam. Era evidente o desconhecimento. Ela conhecia-me. “É a minha filha, eu sei que não está bem”. Soube-o, desde logo. Passava-se algo grave. Muito grave.

Ela sabia-o. Ela sentia-o.

Após sete horas de uma espera infernal, entrei em coma durante longos e serenos treze dias. Então soube-se. Bastou que me observassem com sabedoria.

Um erro. Crasso. Acontece.

O desespero dos dias que passaram incertos, não o soube, não o senti. Talvez tenham pedido que Ele me levasse. Ou rezado infinitamente por mais um sopro de vida. Não o sei.

Acordei. Não falava. Falava, sim. Não me entendiam. Não andava. Não me mexia. Não entendia. Não choravam. Traziam os olhos vermelhos mal disfarçados.

Se eu percebia, não. Não percebia nada. Tinha sido um aneurisma profundo que me atingira o lado esquerdo do cérebro e me paralisara totalmente o lado direito. Algo congénito. Talvez. Percebe?

Sim, acho que percebia. Tinha sede. Sede. Não compreendiam. Tinha fome. Queria … pois, não valia a pena. Que não me preocupasse. Que passava. Paciência. Calma. Eu já tinha percebido.

E, agora, quando fico boa? Quando posso ir embora? Estava farta! Não. Em breve. Não ia ficar boa. E, em breve, iria embora, para casa, com aquilo. Depois ver-se-ia. Como assim?

Devem estar enganados, pensei. Só podem estar enganados. Mas eu estava tão bem. Não sabem o que dizem. Mas sabiam. Bem, apenas em parte!

Passaram-se mais de vinte anos. A hemiparesia total direita permanece (mas falo, falo por sete cotovelos), dizem que a massa neurológica responsável pela coordenação motora se foi. Do mal o menos.

Ontem, lá trás
1993_Radio Cirurgia_Clinica del Sol_Buenos Aires_Argentina

Havia solução!

Uma cirurgia inovadora do outro lado do mundo, na terra do Tango de Gardel, encerraria este capítulo e, depois, anos a fio de intensa fisioterapia, provaram-no. Se assim era, assim seria.

Renascia e, por isso, haveria de agradecer, mais tarde.

mh

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