Chegamos ao centro de Barcelona de metro, em trinta e cinco minutos, saindo na estação do Arc de Triomf, mesmo ao lado do nosso hostel, no Passeig de Pujades. Teríamos quatro dias pela frente. E muita cidade para calcorrear! Iriamos andar a pé para conhecer Barcelona!
ANDAR A PÉ PARA CONHECER BARCELONA
O dia estava lindo como quase sempre são os dias em Barcelona. Todos passeiam nos parques, correm as crianças e os cães na relva verde, os já velhos apanham sol. Vive-se por aqui, vive-se nas ramblas.
A nossa opção hoje seriam os bairros Born e Eixample. Andar a pé também!
Depois de pousarmos as malas, desta vez poucas e leves, fomos almoçar. Embora fosse demasiado cedo para tal em Espanha. Começamos logo com tapas e cava e hambúrgueres deliciosos com tudo a que tínhamos direito, até as patatas bravas com molho picante de arder a língua … refeitos, partimos para o Born … o meu bairro de eleição!
O destino era certo, seguiríamos pelo Passeig Picasso, e rua após rua, entrariamos no bairro Gotic, seguindo os sinais entraríamos no Museu Picasso.
Ao chegar, a feliz informação foi que a entrada dos miúdos era gratuita (assim puderam esticar-se na loja de recordações …), guardamos os pertences e lá subimos as escadas de encontro à genialidade rebelde deste artista impar.
Atentos, foram despertando para a arte que lhes invadia os sentidos, um dos objectivos desta viagem!
Excepcionalmente prolífico durante a sua longa vida, Picasso conquistou renome universal e imensa fortuna graças às suas conquistas artísticas revolucionárias, tornando-se uma das mais conhecidas figuras da arte do século XX.
Depois de um bom par de horas, sempre a andar a pé, embrenhado-nos nas ruas do bairro da Ciutat Vella, respirando a vida de rua dos catalães e dos milhares, que como nós, passeavam felizes.
As pombas, tão presentes na cidade, picavam o chão na esperança de um repasto e a cidade descansava na hora da sesta, que por aqui não se faz sentir, tal é o movimento.
Seguimos sem rumo, apenas acreditando que seguíamos bem. Fomos dar ao caminho de Deus. À Catedral de Santa Eulália de Barcelona, patrona da cidade, que fica na Pla de la Seu, bem no centro do bairro gótico.
Era hora de desfrutar … estávamos cansados de andar a pé! Mas é preciso andar a pé para conhecer Barcelona!
Continuamos passando por todas as lojas internacionais e por um dos muitos El Corte Inglês, até chegar à Plaza da Catalunya, convergência dos bairros Gotic, Raval e Eixample, este último bairro elegante que nos levaria a Gaudi … agora merecíamos um gelado!
Cansa andar a pé para conhecer Barcelona!
Não sem antes paramos por um instante e brincarmos com as memórias futuras.
Já tínhamos andado bastante e os sinais de cansaço, das longas horas acordados, faziam-se se sentir. O percurso ditava vinte minutos e um quilometro e meio.
Depressa chegamos ao ponto de partida e a cumplicidade era estreita e deliciosa. O dia estava ganho e ainda ia a meio.
A esta altura já só queríamos uma cama e metemos pés a caminho, agora ao fim da tarde, apreciando o quanto a cidade era usufruída pelos seus conterrâneos.
Andar de skate, de bicicleta, correr, fazer Tai – Chi ou Yoga, meditar, ler um livro, jogar ao malha ou às cartas.
Finalmente, descansaríamos duas horas. Até sairmos de novo para jantar.
Vimos bares, restaurantes, bistrôts, pizzarias, japonês e chinês … uns cheios como um ovo e outros a aguardar as dez ou onze da noite porque por aqui é tudo tarde … mas na melhor hora!
Dei liberdade de escolha e acabamos numa pizzaria, com um belo forno gigante, de onde sairam, fumegantes e aromáticas, as pizzas deliciosas.
Estavam encantados com a serenidade do dia e a partilha e eu … eu estava enamorada da companhia destes belos rapazes!
Domingo de manhã, o sol brilhava no céu azul de Barcelona, sem necessidade de filtros que lhe avivassem a cor!
Optamos por atravessar o Parc de la Ciutadella.
O parque que é tão bonito quanto agradável para passear. Havíamos acordado tarde, depois da estafa do longo dia anterior, e falhamos o pequeno almoço (mas também não perdemos nada!).
Sem pressas, com o torpor típico de uma manhã que se quer espreguiçada, seguimos olhando, contra o sol, que nos aquecia, tudo à nossa volta sem a preocupação de saber nomes.
Apenas apreciávamos!
As alamedas de árvores robustas, que se encontravam despidas, diziam-nos que ali ainda era inverno, apesar do ameno do ar e da alegria das cores à nossa volta, levaram-nos ao Jardim Zoológico de Barcelona.
Como a fome apertava, sempre aperta um pouco mais quando temos miúdos a perguntar “Aqui, pode ser este?” ou “Não aguento mais, estou a morrer de fome!”, decidimos adiar a visita aos animais e avançamos para o Colombo.
Iniciámos o percurso do Passeig de Colom, paralelo ao mediterrâneo, onde fica a marina e o inicio da Barceloneta, bairro marinheiro.
As ruas perpendiculares são um contraste absoluto com as grandes avenidas. Estreitas, escuras, misteriosas deixam-nos adivinhar as rixas de jogo ou disputa de mulheres de vida por estivadores e mareantes de passagem.
Porque se percebe que por aqui todos têm lugar e todos são tolerados … ou, pelo menos, assim todos o desejam! Desde os que chegam e partem aos que nascem e permanecem. Assim foi desde sempre!
Avisto o Colombo ao fundo. Imagino-o a apresentar os seus planos de aventureiro aos reis católicos prometendo-lhes a India e chegando às Américas.
Por afinidade, eu gosto de Cristovão Colombo e mais ainda do que ele representa, pelo menos para mim, numa abordagem imediata, cada vez que me lembro do seu percurso, sei que os obstáculos existem mas não nos impedem de nada.
Acreditar e Realizar é o meu caminho e foi o de Colombo também.
Logo por trás do Colombo estão Las Ramblas, no plural porque são o junção de muitas pequenas ruas que atravessam a grande avenida, que sobe desde o Porto Velho até à Praça da Catalunya!
Atrevo-me a dizer o coração de Barcelona. Palpitante, vibra com os milhares de turistas e locais que a passeiam para cima e para baixo, sempre curiosos de alguma novidade, alguma descoberta.
Sinto-a cheia de detalhes!
Ali mesmo à minha esquerda, o Teatre Principal, onde ainda não tive oportunidade de ver um espectáculo de Flamengo … mas fica prometido.
É o mais antigo teatro da cidade fundado no século XVI. Sempre foi palco das mais famosas óperas e hoje tem um cartaz mais diversificado.
As fachadas dos imensos edifícios são lindas de se admirar. Deve-se andar de cabeça no ar para se ver com pormenor os ricos trabalhos de azulejaria e pintura.
Mais acima, o Gran Teatre del Liceu, uma das casas de espectáculos mais importantes do mundo. Tradicionalmente apresentava óperas italianas, percorrendo depois as russas e alemãs.
E, por fim, La Boqueria!
O mercado chama-se Mercat de Sant Josep, mas ficou famoso por La Boqueria, o mais colorido e bonito de Barcelona, é um dos primeiros mercados municipais da cidade.
Tudo chama a nossa atenção … os talhos, as peixarias, as frutas, os legumes dispostos como tudo o que é belo deveria estar: cuidado, limpo e vistoso. É frequentado pelos locais mas também é paragem obrigatória de todos estrangeiros e visitantes.
Delicio-me com algumas iguarias, como este belo atum fumado, na verdade bonito de seu nome, mais pequeno que o tradicional atum e mais esguio e comprido.
Apenas olho … e desejo … não o levo!
A bancada de mariscos é de dar água na boca perante tamanha frescura e variedade. A peixeira não tem mãos a medir com tantos pedidos e sempre com tanta satisfação.
Mas a bancada de peixe é de revirar os olhos, a técnica de corte certeiro nos lombos do peixe pelas mãos precisas do mestre faz-nos achar capazes do mesmo, tal é a sua rapidez e facilidade.
Mas confesso que a exposição de frutas me deixa rendida … porque é multicolor, porque é saborosa sem provar, porque é exótica e no entanto tão familiar … para mim representam, todas aquelas frutas, a memória dos sabores doces e maduros.
E a perdição do meu António: os smoothies (os tradicionais batidos) … parecem um arco íris e a vontade é de os tomar a todos … eu prefiro vê-los e fixa-los num instante!
A barriga começou a dar horas pelas três da tarde, paramos num típico bar, o Bar Boqueria, que servia desde amêijoas grelhadas com limão, camarão panado frito, patatas bravas até às famosas butifarras catalanas, típico enchido, preparado com carne de porco fresca e com uma grande quantidade de pimenta, assim como outras especiarias.
Percorrendo o Bairro Gótico vamos percebendo a irreverência de Barcelona, a união perfeita entre o passado e o futuro que se vive no presente.
Da imaginação, tudo se transforma, tudo se reutiliza. O velho ganha novo sentido nesta terra de gente atrevida que se lança à vida e que se reinventa a toda a hora. Nunca baixando os braços.
E o céu que nos cobre mostra-nos a certeza das coisas … a clareza dos dias … as estrelas cintilantes à noite … e é, e será sempre assim, aconteça o que acontecer.
E das sombras das ruas estreitas, surge-nos a luz do futuro. Surge-nos o MACBA.
Numa equação sobre o desejo, a utilidade, o interesse e a arte … concluí que as coisas são importantes na medida que lhe damos valor. Apenas.
Das outras vezes que estive em Barcelona não tinha visitado os grandes museus à excepção da Fundação Miró que adorei, principalmente porque tinha a meu lado o meu ainda pequenino menino Francisco.
Desta vez era ponto assente percorrer algumas capelas da arte. Chegava ao Museu de Arte Contemporânea de Barcelona com grande expectativa na reação dos miúdos.
A instalações propostas eram de grande dinamismo permitindo a nossa interação com a obra exposta.
A estranheza também foi uma constante perante o evidente desconstruído mundo de quem vê para além do óbvio.
Senti o interesse do António despontar para o inquieto tentando encontrar justificações onde não as há, algum senso na loucura.
E percebi-o sereno no meio da estranheza. Também ele via para lá do que ali estava.
Mirava-me em espelhos difusos que contrariavam a clareza que pretendia transmitir de mim mesma. A arte tem este poder. De me transformar. Não sei bem em quê.
Será sempre numa versão melhor da que eu sou.
Lá fora, ao sol, desfilavam em skate rolantes, em piruetas improvisadas, todos os que não se encaixam. Todos os que escolhem, como encosto e repouso, as paredes transparentes do edifício inconformado e exibido do MACBA e ainda assim tão bem aceite por Barcelona, que se quer toda ela contemporânea!
As luzes da tarde tornavam-se duras, e, de súbito, a melodia suave das teclas pairava no ar … imaginem só, haviam espalhados diversos pianos onde quem soubesse e quisesse tocar podia fazê.lo para deleite de quem passeava.
Uma maravilha!
Entrava no Passeig de Grácia, avenida burguesa onde encontramos residências de uma arquitectura fantástica, como a Casa Batlló que visitarei adiante, as mais sofisticadas e distintas lojas internacionais, e restaurantes de renome entre as cadeias conhecidas de todos.
O meu destino era certo, como disse, pois a Casa Batlló era um desejo antigo e tornava-se obrigatória esta visita. E não me arrependi. No nº43, fica esta casa modernista catalã, idealizada em 1875 por Antoni Gaudi e a sua equipa. É considerada património mundial da UNESCO e entende-se porquê.
Josep Batlló, o proprietário, queria destacar-se da família, e para tal contratou o arquiteto, que acabara de ganhar o concurso anual com a Casa Calvet. Com intervenção arquitectónica, este remodelou em profundidade o edifício, reorganizando os espaços, desenvolvendo a iluminação e a ventilação natural, acrescentou dois andares, e remodelou o terraço.
O edifício era na altura um exemplo típico de imóvel, construído para arrendamento, onde os proprietários viviam nos primeiros andares, e os restantes eram arrendados. Este era um novo conceito amplamente usado face às novas características da vida urbana, no final do século XIX.
A visão naturalista de Gaudí que inspirou-se no ambiente marinho. A variedade de cores, a predominância do azul marinho e do ocre das rochas apoiam esta tese. O azul marinho está presente na decoração das cerâmicas, na fachada, no vestíbulo e nos pátios interiores.
De acordo com o historiador Juan José Lahuerta, ” o interior do imóvel torna-se um espaço de tranquilidade para o homem que enfrenta as tribulações da cidade e a luta do mundo, numa espécie de gruta sub-marina onde se recolher, onde encontrar um espaço íntimo, à moda de Julio Verne (…) dentro do ventre materno da terra, da natureza”.
Tudo nos remete ao mundo submarino e a tranquilidade invade-nos pelas formas onduladas ou espirais que nos inspira o mar.
No sotão o corredor com os seus arcos centenários formam um ventre de um dragão.
Já no terraço, é absolutamente espectacular o grupo de chaminés agrupadas como cogumelos, que apresentam o dinamismo e a expressividade de uma escultura.
A entrada é paga e não é barata mas vale todos os euros gastos e inclui os fones de visita guiada. Este é um marco na arquitectura universal e uma inspiração sem precedentes. E para mim um elogio ao sonho e à loucura!
E tudo isto sempre a andar a pé para conhecer Barcelona!
mh