Depois do delicioso café da manhã. Saia da Pousada Colonial para me embrenhar por Salvador. Queria ir ao Pelourinho. A alegria era tanta que sim, eu ia ser turista no Pelourinho.
“Pratique a compreensão. Somos diferentes, mas somos todos humanos!”
Encontrei a caminho do Pelourinho. Claro, foi o que pensei, um exagero!
Entrei na Rua do Carmo e apreciei os casarões coloridos, verdes, amarelos, rosas, azuis, bem cuidados, que reservavam interiores deliciosos, sempre com o quê de artístico, cultural ou musical.
A Bahia é terra inspirada! E Salvador é luz dessa inspiração.
As ruas, às dez da manhã, apresentavam-se vazias, com um ou outro transeunte a passar de lés a lés, uma carrinha que descarregava alguma encomenda para o comércio local, e pouco mais.
Completamente pacifico!
Chegada ao Convento do Carmo entrei e sentei-me a rezar … tinha tanto a agradecer e a comoção tomou conta de mim.
Sabia que esta aventura era algo muito pessoal, tão meu, que quando o decidi não perguntei nada a ninguém, não pedi conselhos, nem sugestões.
Sabia também que muitos não entendiam, nem aceitavam, apenas o viviam porque assim os chamei a essa responsabilidade. Sabia ainda que a minha vida estava a mudar e eu de forma consciente vivia essa mudança.
Agradeci toda a minha vida passada e pedi proteção para tudo o que se estava a iniciar. Não sabia se era certo ou errado, sabia apenas que era o meu caminho.
À saída dei de caras, pela esquerda, com a Ladeira do Carmo que descia até ao Pelourinho, mas por aqui tinham dito para não ir, não fui.
No regresso, decidi subi-la, percebi, mais à frente, porque não o devia ter feito.
Fui pela Rua do Passo, à minha direita, depois desci uma outra rua, e no fim dei uma volta muito maior e muito mais sinuosa, com paralelos moldados pelo tempo e sem forma exata. Um autentico quebra-cabeças para os meus pés.
Lá cheguei ao Pelourinho!
O Pelourinho fica numa ladeira. As pedras da calçada, sujas e gastas, comoveram-me muito.
Já sei, estou muito chorona!
Um filme rebobinou na minha cabeça e, todas as músicas, todos os documentários, todos os livros, todas as páginas desfolhadas, todas as novelas, todos os grilhões, todo o sangue, todas as chibatas, vieram até mim, arrebatando-me.
A minha ligação ao Brasil é de raça negra, é de navios negreiros, é de escravos, é de passados longínquos, mas é também de redenção, de perdão, de paz. Tudo fazia sentido!
Sentei-me nas escadas a contemplar toda aquela história viva e respirei fundo. As cores coloridas das casas contrastavam com o preto das gentes que sorriam …
– Minha linda, sorria está na Bahia … Aceite minha oferta!
– Não, querido, obrigada … dessas eu tenho muitas e não as uso! – afastei o guia improvisado.
– Mas estou lhe oferecendo e não se recusa o que é do coração – tentava ele.
– É, eu sei, mas não quero, não. – terminei o assunto.
– É brasileira? Ah, nem vale a pena … Ah, é gringa? As gringas já não são como dantes, agora ninguém aceita nada! Minha querida, está no Pelourinho, sorria está na Bahia! Aceite minha oferta … – tentava agora num casal mexicano, que aceitou, acabando a comprar mais uns quantos colares que vinham juntos com a “oferta”.
Inofensivo!
Levantei-me e estava agora de frente para o casarão azul da Fundação da Casa de Jorge Amado.
Passaria um par de horas perdida entre os livros, as curiosidades, os prémios, os objectos, as roupas de Jorge Amado.
Em 1986, foi criada a Fundação Casa de Jorge Amado, que seria inaugurada em 7 de março de 1987.
À noite, uma grande festa reuniu, em um show memorável, grandes artistas à qual compareceram mais de 20.000 pessoas .
“(…) Assisti de uma janela ao começo da festa, não tive condições de ficar até o fim, o coração tem seus limites”, Jorge Amado.
A memória de Jorge Amado mantêm-se viva desde que foi inaugurada a Casa de Jorge Amado que conta com uma exposição permanente de documentos, fotografias, livros, suas apropriações populares, adaptações e objetos de toda uma vida. Também estão expostos prêmios recebidos pelo escritor e fotos tiradas por Zélia Gattai, que documentava o dia-a-dia do autor.
A Fundação Casa de Jorge Amado localiza-se nos casarões de número 49 e 51 do Centro Histórico de Salvador. No casarão de nº 68 da Rua Alfredo Brito, a poucos metros da sede da Fundação, viveu Jorge Amado.
Cenário de vários episódios de romances de Jorge Amado, o Pelourinho já corria o mundo com as histórias de Dona Flor, Pedro Arcanjo, Tereza Batista, Quincas e mais uma dezena de personagens que, calcados no imaginário do escritor, podem ainda hoje ser confundidos com diversos tipos populares que percorrem suas ruas sombreadas de sobrados.
Guardião
“Quem guarda os caminhos da cidade do Salvador da Bahia é Exu, orixá dos mais importantes na liturgia dos candomblés, orixá do movimento, por muitos confundido com o diabo no sincretismo com a religião católica, pois ele é malicioso e arreliento, não sabe estar quieto, gosta de confusão e de aperreio.
Postado nas encruzilhadas de todos os caminhos, escondido na meia-luz da aurora ou do crepúsculo, na barra da manhã, no cair da tarde, no escuro da noite, Exu guarda sua cidade bem-amada.
Ai de quem aqui desembarcar com malévolas intenções, com o coração de ódio ou de inveja, ou para aqui se dirigir tangido pela violência ou pelo azedume: o povo dessa cidade é doce e cordial e Exu tranca seus caminhos ao falso e ao perverso.”
Entretanto o tempo passou e decidi comer uns “quitutes” à la Gabriela e Seu Nacib e acabei a deliciar-me com um pastel de camarão e outro de carne.
E li “Se for de paz, pode entrar.”
E, em paz, voltava à pousada para me refrescar, adoro os banhos a toda a hora, e seguir para o passeio à orla de Salvador. Decidi, tão segura me sentia, subir a Ladeira do Carmo, a tal que não era aconselhado descer, e fui airosa e o mais turista que se pode ser, deslumbrada e de cabeça no ar a admirar tudo. Vi crianças, muitas, que me chamavam, que pediam.
– Aí, tia, dá um troco, dá … – atiravam.
Velhas, muitas velhas, mesmo velhas de gastas, usadas, estavam sentadas na soleira da porta de suas casas e olhavam-me. E havia também quem de dentro me olhasse, e eu não visse, mas sentisse.
De repente, percebi. Vai ser agora. Não, não era seguro. Segui atenta, mas preparada.
Já de novo no Carmo não havia ninguém na rua, apenas eu e passos atrás. Eram dois. Uns moleques, de uns treze, talvez quinze anos, falavam descontraídos e alto que se ouvisse, eu ouvia. Mais à frente, quase já na Santo António, um deles atravessa a rua e segue à esquerda por uma ladeira estreita. O outro, em segundos, deita a mão. Talvez os dedos. Ao cordão dourado, foleiro, pechisbeque, da minha bolsa portuguesa (porque vermelha, amarela e verde) que após o puxão logo rebentou e resvalou para debaixo de um carro.
Pronto já está!
Desatei a insulta-los, gritando … sem saber muito bem o que fazer até que chegou um senhor de mota e me acalmou.
– É, infelizmente é assim … não querem trabalhar, são uns malandros … mas a menina está bem? Quer um copo de água? Quer que chame alguém? Ah, está sozinha! Pois, aí é mais difícil!
Não era não. Enchi o peito de ar, meti a mala, com o telemóvel dentro, debaixo do braço e, a tremer, fiz os quinhentos metros que me separavam do meu porto seguro. Cheguei, contei o que tinha sucedido. Bebi água. Subi e desabei debaixo da água fria que me confundia o sal das lágrimas.
Já está! Agora estás segura! E estava.
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Aqui aprendi que na nossa vida entra quem vier por bem, quem for de Paz.
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