A minha vida tem tantas vidas quantas as músicas que tocam no meu gira-discos. E tocam sambas, baladas, boleros. Fados e guitarras. Piano, cordas e sopro. Tenores e Sopranos. Popular e folclore. Orquestra ou violão. Assim é.
A minha vida é de altos e baixos, dias cheios, preenchidos por tantas outras vidas, que a vida me entrega, e outros vazios, sem nada a acrescentar, silenciosos, de pausa forçada, desejada. São leves uns dias como uma tarde de outono à beira-mar, onde o sol pousa delicado sobre o mar, com pressa de se deitar ou pesados como uma pedra que se arrasta, marcando a terra, o chão, puxando a alma. Mas a minha vida é aquela que escolhi. É aquela que eu quero!
E gira como agulha num gira-discos. Sem parar!
E a minha vida é também um bolero sublime de boite foleira, que no escuro embala pernas, que juntas se enlaçam, numa cadência ritmada de dois por dois, que termina nos braços que abraçam o desejo, nas bocas que se encontram e se perdem.
É Chico na voz de Elis, é Roberto na voz de Bethânia, é Caetano na voz de Maria.
Hoje, cansada como estou, realizada como sou … vou seguindo a estrada pela madrugada, vou por aí a procurar, rir para não chorar! Ah Cartola, que na tua vasta poesia, me dás a ilusão de ser poeta. Mas não se enganem com estas palavras, não são minhas, são dos mestres, que tomo para mim, para a minha vida romancear.
Quando em ’66, quando eu não era ainda nascida, quando o Chico ainda não me tinha feito sonhar, suspirar pelos seus ternos olhos azuis, desejar a sua mão firme em mim, desmaiar com os seus doces beijos cantados, a Banda passou e não mais se calou!
Ele era um menino, bonito, como todos somos algum dia. Cantava livre. Bebia uísque, muito uísque. Tocava o seu violão. O sonho, que depressa morreu num cativeiro sem amarras, nunca o largou e ele, que é poeta, sabe, que o desespero dos que não acreditam, entre copos, se espanta cantando.
Hoje, que não mais sonho com o homem, apenas com o poeta, que não é de carne, mas me eleva, celebro a sua arte. O seu samba. O seu choro. A sua música. E a música foi o fio condutor, o elo que se fortalecia a cada acorde, a cada sotaque. E, no gingado, requebrado, ia dançando embriagada pelo acerto da batuta que compassava os meus passos.
Chico, para uns desconhecidos (como se isso fosse possível), para outros amado, idolatrado, odiado, desprezado é a fantasia do ideal imaginado que existe em cada uma, menina ou mulher, em cada uma de nós mulheres.
Descanso agora nos seus braços, sonhando ao longe com os sopros em crescendo anunciando a chegada. É o Chico, está chegando! E, injusta como só poderia ser, vou colocar o gira-discos a rolar. E deixo a Banda passar.
E cada qual no seu canto
Em cada canto uma dor
Depois da banda passar
Cantando coisas de amor
Mas se Chico não chegasse, haveria Vinicius que é um poeta vivo! Chamo poeta vivo àquele que observa a realidade e a transforma em poesia. Cantada, a minha preferida!
O Dia da Criação é a tradução do ser-se homem e do ser-se mulher. Somos todos nós. É tão absurdo o discorrer daqueles versos, com a repetição esperada, como terrivelmente realista. Não traduz a beleza da poesia e da música de Vinicius. Ele é imenso. Ele é gigante. E a ele volto sempre.
Hoje não é sábado mas porque me apetece a seguir a Chico ouvir Vinicius, deixo-lhe a minha homenagem.
Os versos que me surgem …
Impossível fugir a essa dura realidade
Neste momento todos os bares estão repletos de homens vazios
Todos os namorados estão de mãos entrelaçadas
Todos os maridos estão funcionando regularmente
Todas as mulheres estão atentas
Porque hoje é sábado.
E dos poetas às Divas. Estas são as divas que giram no meu Gira-Discos.
Maria é o meu nome feminino preferido. Eu sou Maria. A minha mãe é Maria. Não tenho filhas que seriam Maria’s também. E depois há outras Maria’s que eu amo. Que não sendo minhas vestem-me a pele pois eu sou delas. E, em jeito de ostentação pura, me exibo em seus braços!
Senhoras e Senhores …
Maria Bethânia. Abelha rainha. Filha de sangue de Seu Zézinho e de Dona Canô. Filha da alma de Oxum, do Candomblé, de pele irmã de Caê, e de outros poetas, filósofos, músicos, que a família Veloso é chão fértil. Lá vinda de Santo Amaro, na Bahia, Maria foi, é (está em mim) a diva de tudo o que poderia ter desejado ser. Ela é dura. Ela é sensível. Ela é guerreira. Ela é mística. Ela é mulher. E ela gira. Gira sempre no meu gira-discos. Ela ama a Chico. Ela canta Roberto. Ela chora Noel. Ela é Mangueira. Ela bebe. Ela fuma. Ela fica quieta. Ela se eleva. Ela é irrequieta. Ela se renova. E ela me inspira.
Maria Gadú. “Menina, que parece menino favelado, com voz celeste” assim a definiu Caetano quando a viu pela primeira vez, sentada no seu banquinho, lá num bar do Rio de Janeiro, comentando com Bituca – Milton Nascimento.
Quando eu a ouvi, eu nem a queria ouvir. Foi um acaso. E nem era meu gira-discos a tocar.
Eu adoro o samba paulista, mais ainda Adoniran, e procurava como companhia de almoço, no you tube, o Trem das Onze, onde volto a todo o instante (é que os prefiro assim, meus, de todos os tempos, sem disponibilidade para o novo que não me é nada) e surge ela. A voz clara, doce, quente da Maria arrasou com o meu coração! E assim é até hoje. Paixão assolapada que vai conquistando o palco do amor.
Hoje, sinto um orgulho desmedido pois as minhas Maria’s caminham lado a lado, dentro do meu peito, e vão pelo mundo comigo aconchegada de acalanto, de desejo, de ternura, de prazer.
A elas, Maria Bethânia e Maria Gadú, as minhas palmas, as minhas lágrimas, o meu eterno agradecimento.
mh